AÇÃO PENAL Nº 5001456-71.2012.404.7002/PR
AUTOR:
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
RÉU:
ADVOGADO:
SEBASTIAO GONTIJO GASPAR
INTERESSADO:
POLÍCIA FEDERAL
Despacho/Decisão
Avoco os autos.
I.
Houve oferecimento de denúncia pela prática, em tese, do delito previsto no artigo 273, parágrafo(s), do Código Penal.
O artigo 273 do Código Penal, com a redação que lhe foi dada pela Lei n. 9.677, de 2.7.1998, assim dispõe:
Art. 273. Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais:
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa.
§ 1º. Nas mesmas penas incorre quem importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribui ou entrega a consumo o produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado.
§ 1º-A. (omissis)
§ 1º-B. Está sujeito às penas deste artigo quem pratica as ações previstas no § 1º em relação a produtos em qualquer das seguintes condições:
I - sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente;
II - em desacordo com a fórmula constante do registro previsto no inciso anterior; (Incluído pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)
III - sem as características de identidade e qualidade admitidas para a sua comercialização; (Incluído pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)
IV - com redução de seu valor terapêutico ou de sua atividade; ((Incluído pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)
V - de procedência ignorada; (Incluído pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)
VI - adquiridos de estabelecimento sem licença da autoridade sanitária competente. (Incluído pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)
Nada obstante, a aplicação do referido tipo ao caso em questão conduz a flagrante situação de inconstitucionalidade.
Conforme restou anteriormente constatado, a conduta do acusado consistiu em internalizar para o Brasil produtos farmacêuticos previamente adquiridos no Paraguai.
Vê-se, assim, que a reprovabilidade da conduta não se mostra grave a ponto de justificar a cominação de pena mínima no patamar de 10 (dez) anos de reclusão.
A esse respeito, destaco parte do voto proferido pelo Eminente Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz, Relator da Apelação Criminal n. 2001.72.00.003683-2/SC (8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região - DJU de 2.3.2005):
A Lei dos Remédios (Lei nº 9.677, de 02.07.98), ora posta sob exame, é mais um desses diplomas que padecem de imperfeições evidentes, defeito que só se pode atribuir a esse fenômeno que se poderia denominar, à falta de termo mais preciso, de legislatura de ocasião, o qual, se é que isso serve de consolo, não é característico apenas de nossa cultura. 'Só se pode compreender tais exageros', diz Miguel Reale Júnior ao comentar o diploma mencionado, 'pelo clima emocional que caracterizou, especialmente por meio da mídia, a denúncia e o debate de casos de 'falsificação de remédios', questão politizada ao máximo em época eleitoral, com vistas a transformar o Direito Penal em espetáculo. Este fenômeno, não ocorrente apenas entre nós, é examinado por Michele Correra et alli, segundo os quais pretende-se assim trocar a ilusão de segurança por votos. 'Também Alessandro Baratta e Sérgio Moccia', observa o eminente professor, 'analisam fenômeno parecido na Itália, onde por igual se legisla casuisticamente, ao sabor dos fatos, de forma panfletária, tal como tem continuamente sucedido no Brasil, em especial na elaboração desta Lei 9.677 e da Lei 9.695, de 20.08.1998, não por acaso a única lei votada pelo Congresso Nacional durante o tempo de recesso 'branco' na fase pré-eleitoral' (A Inconstitucionalidade da Lei dos Remédios, RT-763, maio de 1999, 88º ano, pp. 415/431). (omissis)// 'Para ilustrar o primeiro caso, tome-se, a título exemplificativo, o crime de homicídio simples, descrito no caput do art. 121 do CP, cuja pena mínima é de 06 anos, e dois delitos previstos na Lei nº 8.072/90: o tráfico ilícito de entorpecentes e a tortura. O tráfico, cuja gravidade ninguém contesta, tem pena mínima de 03 anos; a tortura, de sua vez, crime tão repugnante que mereceu especial atenção do legislador constituinte, tem pena mínima de 02 anos, sendo esta aumentada para 08 anos 'se resulta morte' (art. 1º, § 3º, da Lei nº 9.455/97). Como exemplo do segundo, basta dizer - sendo isso assinalado no artigo do emérito professor - que a lei incrimina do mesmo modo o adulterador ou falsificador do remédio e aquele que, não realizando conduta de adulteração, expõe à venda remédio sem que para tanto detenha autorização legal. Também aqui pode ser lembrada a circunstância de o legislador ter, 'de forma absurda', feito incluir, 'no § 1º-A, entre os produtos objeto do art. 273, punidos com severíssimas penas, os cosméticos (destinados ao embelezamento) e os saneantes (destinados à higienização e à desinfecção ambiental), ferindo, assim o princípio da proporcionalidade' (Delmanto, citado por Capez, p.220)'.
Vale observar que, quanto ao tráfico de entorpecentes, com o advento da Lei n.º 11.343/06, a pena mínima foi aumentada para 05 (cinco) anos, isto é, exatamente a metade daquela cominada para o artigo 273, § 1º-B, do Código Penal.
Nesse contexto, o quantum da pena cominada pelo legislador mostra-se, ao menos para o presente caso, completamente desarrazoado, ferindo o princípio da proporcionalidade, cuja consequência é a inconstitucionalidade da aplicação do tipo.
Sabe-se que o princípio da proporcionalidade, comum ao Direito como um todo, mas cuja importância mostra-se mais sensível no âmbito do Direito Público, caracteriza-se basicamente pela proibição do excesso.
Em simples palavras, não pode o poder público, diante da necessidade da restrição autorizada de um direito fundamental, restringi-lo para além do que seria necessário. Os direitos fundamentais, dentre os quais o direito à liberdade, 'só podem ser restringidos quando tal se torne indispensável e no mínimo necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos' (CANOTILHO, J. J.G. & MOREIRA, V. Fundamentos da constituição. Coimbra : Coimbra, 1991, p. 134).
A respeito do tema, oportuno esclarecer que este Juízo não é partidário da profanação do princípio da proporcionalidade. Ocorre que se tem observado, não raro, a invocação do princípio da proporcionalidade nas hipóteses em que o operador jurídico pura e simplesmente não está de acordo com a decisão política do legislador.
O que se tem visto, na prática, é uma disseminação de declarações de inconstitucionalidades, sob o pretexto da violação do princípio da proporcionalidade - argumento amiúde aliado à violação do princípio da dignidade da pessoa humana -, quando na verdade, o que se tem, é a mera discordância do operador do direito com a decisão política do legislador.
Acerca desse embate, compartilho do entendimento de Otto Bachof quando sustenta que há uma 'primazia política do legislador', o que vem sendo sustentado no âmbito penal, embora em outro contexto, por Jorge de Figueiredo Dias, para quem, sem grifos no original, 'não pode ser ultrapassado o inevitável entreposto constituído pelo critério da necessidade ou da carência de pena. Critério esse que, em princípio, caberá ao legislador ordinário avaliar e só em casos gritantes poderá ser jurídico-constitucionalmente sindicado, nomeadamente por violação ao princípio da proporcionalidade em sentido estrito (v.g. quando o legislador ordinário entendesse sancionar o homicídio doloso apenas com sanções jurídico-civis; ou quando decidisse subverter por completo a ordenação axiológica constitucional, descriminalizando totalmente a lesão de valores pessoais e criminalizando de forma maciça a lesão de valores patrimoniais!)' (DIAS, J. F. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo : RT, 1999, p. 80).
Ora, no caso em tela, por todas as razões apontadas no acórdão cujo trecho acima se transcreveu, está presente uma dessas hipóteses gritantes de violação do princípio da proporcionalidade, na medida em que a pena mínima prevista para o crime em tela ultrapassa qualquer senso de proporção em face da conduta apenada, principalmente se comparada com outras condutas muito mais graves previstas no ordenamento jurídico penal, as quais têm penas bem menores cominadas.
Só o exemplo do crime de tortura seguido de morte, cuja pena mínima é menor já é o bastante e dispensa qualquer outro comentário.
Assim, considerando que a violação ao princípio da proporcionalidade acarreta afronta a própria Constituição da República, há que se reconhecer a inconstitucionalidade gerada pela aplicação do artigo 273 do Código Penal ao vertente caso, e afastar, no todo, a sua incidência.
Nesse ponto, ouso divergir de entendimento existente no âmbito do TRF da 4ª Região, o qual, por considerar desproporcional a pena prevista no artigo 273 do Código Penal, aplica a ele, por analogia 'in bonam partem', a pena do crime de tráfico ilícito de entorpecentes (Apelação Criminal n. 2001.72.00.003683-2/SC, DJU de 2.3.2005 e Apelação Criminal n.º 5001993-29.2010.404.7005, Data da Decisão: 15/12/2010).
Com efeito, reputo que a postulada combinação de leis não condiz com a melhor técnica jurisdicional. Efetivamente, em assim agindo, estar-se-á criando um tertium genus, o que tenho como indevido ao órgão judicial.
Nessa senda, o preceito secundário do tráfico de drogas serve tão-somente como parâmetro para a constatação da inconstitucionalidade da pena cominada à conduta praticada no presente caso.
Além disso, as normas em comento tratam de condutas visivelmente distintas, não havendo razão para se aplicar as determinações da Lei n.º 11.343/06, pois, assim, na realidade, estar-se-á considerando o vertente crime como tráfico de drogas.
Destarte, não vislumbro razão jurídica plausível na aplicação das prescrições da Lei n.º 11.343/06, inclusive, § 4º do artigo 33 e artigo 40, I. Frisa-se, da mesma forma em que ela seria aplicada, poderíamos avocar a pena do crime de tortura, do homicídio simples, enfim.
Com o devido respeito às opiniões contrárias, entendo que uma vez constatada a violação ao princípio da proporcionalidade, a solução é a não aplicação da respectiva norma penal ao caso concreto.
Assim, afastada a incidência inconstitucional do dispositivo (artigo 273 do CP), não cabe ao Judiciário, por analogia, aplicar a pena de outro tipo ao qual não se subsume a conduta do réu. A analogia, aí, em verdade, revela-se 'in malam partem', se considerado o dispositivo no qual passa a estar incursa a conduta do réu.
Entendendo pela inconstitucionalidade da incidência do tipo penal, cabe ao órgão jurisdicional afastar integralmente a sua aplicação, incumbido verificar se em razão disso houve a atipicidade absoluta ou relativa.
Pois bem, constato que o presente caso concerne a atipicidade relativa, uma vez que, afastada a incidência do artigo 273 do CP, há o perfeito enquadramento da conduta no tipo penal previsto no artigo 334 do referido estatuto legal, pois, em relação à conduta de importar, o referido artigo 273 é norma especial do crime de contrabando e descaminho, conforme já decidiu o e. TRF da 4ª Região:
PENAL. DESCAMINHO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. ELEMENTO OBJETIVO ATENDIDO. APLICAÇÃO. FALSIFICAÇÃO, CORRUPÇÃO, ADULTERAÇÃO OU ALTERAÇÃO DE PRODUTO DESTINADO A FINS TERAPÊUTICOS OU MEDICINAIS. FORMA EQUIPARADA. ART. 273, § 1º-B, I, V E VI, DO CP. COMPETÊNCIA FEDERAL. INTRODUÇÃO EM TERRITÓRIO NACIONAL DE COMPRIMIDOS DE CYTOTEC. CONFISSÃO EXTRAJUDICIAL. PENA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. REDUÇÃO. PARÂMETRO. DELITO. PENA CARCERÁRIA. REDUÇÃO. SUBSTITUIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. RÉU ESTRANGEIRO. RESIDENTE NO URUGUAI.
1. (...)
2. (...)
3. Os crimes que afetem a saúde pública não atraem, só por isso, a competência federal. A importação de remédio de procedência ignorada, sem registro e adquirido de estabelecimento sem licença do Órgão de Vigilância Sanitária competente, no entanto, pode ser entendida como contrabando sob forma especializada. Por opção legislativa (Lei nº 9.677/98), uma conduta que antes se amoldava ao tipo previsto no art. 334 do CP passou a ser prevista em tipo penal próprio (art. 273 do CP), providência que não alterou, todavia, a competência federal para processamento e julgamento do feito.
(...) (TRF ACR 2002.71.02.007192-0/RS. Oitava Turma. Relator Paulo Afonso Brum Vaz. D.E. 22/08/2007). Grifou-se.
EMENTA: PENAL. PROCESSUAL PENAL. ARTIGO 273, § 1º, C/C §1º-A E §1º-B, INCISO I, DO CP. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. 1. O delito previsto no art. 273, §1º, § 1º-A e §1º-B, I, é tipo penal especial em relação aos delitos tipificados no art. 334 do CP (contrabando e descaminho) e possui como bem jurídico a saúde pública, cuja competência legislativa e material é concorrente, ou seja, de responsabilidade de todos os três entes da Federação (arts. 23, II, e 196 e seguintes, da CF/88). 2. Tratando-se de medicamentos adquiridos no Brasil, ausentes indícios da internacionalidade da conduta, afastada está a competência da Justiça Federal para o exame do feito. (TRF4, ACR 0005268-59.2005.404.7001, Oitava Turma, Relator Paulo Afonso Brum Vaz, D.E. 31/05/2011)
Nessa senda, tem-se que o tipo previsto no artigo 334, caput, do Código Penal, consiste em importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria, de modo que a expressão contrabando está reservada para a hipótese de importação ou exportação de mercadorias proibidas, enquanto que o termo descaminho significa fraude total ou parcial no pagamento de tributo pela entrada, saída ou consumo de mercadorias permitidas.
Logo, a diferença entre contrabando e descaminho reside em que na primeira figura a mercadoria é proibida e, na segunda sua entrada é permitida, porém o sujeito frauda o pagamento do tributo devido (JESUS. D. Direito Penal. Saraiva, 1998, p. 203, 4° vol.).
No vertente feito, verifica-se que os medicamentos apreendidos eram de procedência estrangeira e sua introdução em território nacional era proibida.
Ressalto que as substâncias encontradas não se encontram nas listas da Portaria nº 344/98-SVS/MS. Outrossim, a sildenafila foi excluída da Lista C1 da citada Portaria pela RDC nº 62, de 03/07/2000.
Bem assim, demonstrado que a imputação que recai sobre o acusado é de introdução em solo nacional de fármacos proibidos, em desacordo com a determinação legal ou regulamentar, patente que a capitulação se subsume à previsão do crime de contrabando.
Tem-se, pois, como configurada a adequação típica do delito previsto no artigo 334, caput, do Código Penal.
II.
Ante o exposto, desclassifico a conduta imputada ao acusado para a figura típica prevista no art. 334, caput, do Código Penal.
Permanecendo-se em análise apenas delitos do artigo 334 do Código Penal, faz-se mister obedecer o regramento disposto no art. 2º da Resolução nº 3/2011 do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que assim estabeleceu:
Art. 2º Atribuir à 2ª Vara Federal Criminal de Foz de Iguaçu competência para processar e julgar com exclusividade os crimes de contrabando e descaminho (art. 334 do Código Penal) e violação de direito autoral (art. 184 do Código Penal), isoladamente ou combinados com crimes cuja pena seja igual ou inferior à cominada nos artigos 334 e 184 do Código Penal, qualquer que seja o meio ou o modo de execução.
Portanto, DECLINO da competência deste feito em favor da 2ª Vara Federal Criminal desta Subseção Judiciária, à luz do preconizado no art. 2º da Resolução nº 3/2011 do TRF da 4º Região.
Intimem-se.
Havendo interposição de recurso(s), presentes os pressupostos subjetivos e objetivos (em especial, tempestividade), o que deverá ser verificado pela Secretaria, desde logo, recebo-o(s) também em seu efeito suspensivo. Em sendo o caso de recurso, suspenda-se, portanto, este processo e, nos autos pertinentes, intime(m)-se a(s) parte(s) para apresentação das razões recursais, no prazo de 02 (dois) dias, e para apresentar as contrarrazões recursais, em igual prazo. Oportunamente, façam aqueles autos conclusos.
Em prol da economia processual, deixo de analisar o cancelamento das eventuais pendências do processo (retorno de cartas precatórias, ofícios etc) pelo fato de poderem ser aproveitadas pelo juízo declinado.
Redistribua-se.
Foz do Iguaçu/PR, 17 de dezembro de 2012.
Edilberto Barbosa Clementino
Juiz Federal